Existe uma anedota bastante conhecida sobre os matemáticos. O sujeito está num balão que vaga a esmo sobre um grande deserto. Perdido, ele avista um andarilho na linha do horizonte. Por sorte os ventos o levam até uma distância próxima do andarilho. Lá de cima o sujeito grita:
— Eeeeeeeeiiiii, aí embaixo! Onde é que estou?
O andarilho observa, analisa e responde:
— Você está num balão.
Diante desta resposta o sujeito, atônito, retruca.
— Você é um matemático, não é?
— Sim, como você sabe?
— Bom, sua resposta é absolutamente correta e não serve absolutamente para nada.
Essa piada é o que podemos chamar de "piada genérica" e é muitas vezes customizada para outras profissões, é possível que vocês já a tenham ouvido interpretada por outros atores, como os Consultores ou mesmo os Estagiários, mas nenhum possui um perfil tão adequado quanto os Matemáticos aos propósitos da piada.
Sim, a matemática está preocupada com a verdade, tão preocupada que preferimos muitas vezes falar o óbvio a correr o risco de cometer uma imprecisão. É surpreendente que falando o óbvio o tempo todo alcançamos verdades não tão claras assim, fato que pretendo ilustrar para vocês.
Na cidade de São Paulo existem duas pessoas com a mesma quantidade de fios de cabelo?
Procurem responder a questão acima. Imagino que uma série de respostas serão possíveis. Enumero alguma delas:
1) Acho que não.
2) Acho que sim.
3) Não podemos afirmar com certeza.
4) Não, é claro que não.
5) Sim, com certeza sim.
6) Sim, dois carecas tem zero fios de cabelo.
Para acabar com a alegria de quem respondeu a resposta (6), consideramos que não há carecas, ou se preferirem, que trocamos cada careca por uma pessoa com cabelo de outras cidades.
Neste ponto, volto a insistir na pergunta, existem ou não existem duas pessoas com a mesma quantidade de fios de cabelo. O que diz a intuição de vocês? O meu palpite é que a grande maioria responderá algo próximo das repostas (1), (2) ou (3). Estou certo?
Bom, agora vou provar, isso mesmo, provar, que com certeza existem duas pessoas na cidade de São Paulo com a mesma quantidade de fios de cabelo. Para tanto, lançarei mão de dois axiomas, duas premissas que uma vez aceitas, se tornarão verdades irrefutáveis no desenvolvimento do raciocínio.
- (Axioma I) Nenhuma pessoa possui mais de 1 metro quadrado de couro cabeludo.
- (Axioma II) Nenhuma pessoa possui mais de 1000 fios de cabelo por centímetro quadrado de couro cabeludo.
Para mim é razoável que não existam pessoas na cidade de São Paulo que violem qualquer um dos axiomas propostos. Agora, se vocês discordam é porque conhecem tal aberração e nesse caso sugiro interromper o artigo e levar seu amigo para qualquer programa de televisão que aprecie este tipo de atração.
Bom, se chegou aqui é porque aceitou os axiomas. Nesse caso, é simples concluir que nenhum ser humano pode ter mais do que 10.000.000 fios de cabelo. Note que se qualquer pessoa tiver mais do que 10.000.000 fios terá quebrado um ou os dois axiomas.
Neste ponto, devemos escolher alguém para realizar o trabalho da contagem. Para dificultar, vou escolher um "recenseador capilar" corrupto, disposto em troca de uma boa soma em dinheiro, a provar o contrário, isto é, que não existe empate de número de fios de cabelo em São Paulo. Como instrumento de trabalho o recenseador receberá uma lista numerada de 1 a 10.000.000 e seu trabalho será marcar ao lado de cada número quantas pessoas foram encontradas.
O recenseador inicia, então, seu trabalho. Escolhe a primeira pessoa, conta 2347 fios, a segunda 1230, a terceira 4007 e assim vai, contando e anotando na sua lista.
Em determinado momento, ele se depara com o número 4007 novamente, aquele mesmo encontrado para a terceira pessoa avaliada. Se ele marcar novamente 4007, haverá duas pessoas com aquele mesmo número. Disposto a adulterar a informação, ele olha para os lados e disfarçadamente considera 4008, número ainda não utilizado.
Depois de meses de trabalho, o recenseador já coletou 10.000.000 números, isto é, ainda faltam 2 ou 3 milhões para completar o trabalho, afinal, todos sabemos que São Paulo tem bem mais do que 10 milhões de habitantes.
Ao pegar a caneta para registrar o próximo número, nosso recenseador percebe ( tardiamente pensará o leitor mais perspicaz) que todos os números já estão ocupados e não resta alternativa para ele, mesmo adulterando os resultados, a não ser repetir algum número. Enfim, aceito os axiomas, com certeza existem em São Paulo duas pessoas com a mesma quantidade de fios de cabelo.
O raciocínio acima é baseado no Princípio da Casa dos Pombos, princípio que afirma que se n pombos devem ser postos em m casas, sendo n > m, então pelo menos uma casa irá conter mais de um pombo. Apesar de se tratar de um fato extremamente elementar e óbvio, o princípio da casa de pombos é útil para resolver problemas que não são imediatos. Naturalmente, quando aplicamos o princípio devemos identificar quem são os "pombos" e quem são as "casas" de nosso problema.
Espero que vocês tenham acompanhado o raciocínio e percebido que, mesmo se escolhermos um recenseador viciado, a conclusão será a mesma. O desenvolvimento acima é uma demonstração matemática como qualquer outra apesar de utilizar um formato pouco usual. A partir de um conjunto de axiomas, realizamos deduções até chegamos ao resultado esperado.
Não sei se esse resultado o impressiona mas quando percebi isso pela primeira vez fiquei bastante intrigado com o fato de que, mesmo sem contar cada caso, posso ter certeza desta informação por um raciocínio indireto, mas totalmente válido e irrefutável.
3 comentários:
Muito bem feita a comprovação!
Parabéns pelo texto!
Muito bom Alexandre. Observei seu artigo na Revista do Professor de Matemática 66 - 2º quadrimestre, 2008. Claro, lá com mais detalhes, inclusive por álgebra.Parabéns!
Olá pessoal,
Como já comentado, esse post virou artigo da revista do professor de matematica numero 66
http://www.rpm.org.br/cms/
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