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quinta-feira, 22 de novembro de 2007

O Mestre Azulejista



Marcílio Santos é um mestre azulejista. Domina a arte de ladrilhar uma superfície como ninguém. Marcílio possui uma pequena oficina em sua residência onde ele também produz azulejos de diversas padronagens e tamanhos. Marcílio é capaz de desenvolver uma padronagem tão complexa que torna a vida dos aprendizes bastante difícil, é como um quebra-cabeça.

Marcílio levou uma infância difícil, sétimo filho de oito crianças. Seu pai, Edinaldo, fora pedreiro toda a vida e foi dele que Marcílio recebeu a motivação que modelaria seu destino. Edinaldo dizia que a profissão de pedreiro não era valorizada e que, se ele queria ser alguém, deveria ser azulejista como seu amigo Sebastião, esse sim, bem de vida.

Marcílio estudou até a quarta série, aprendeu a ler e também as quatro operações. Edinaldo preocupou-se com o futuro do filho, então, tão logo quanto pode, tirou Marcílio da escola para que pudesse trabalhar na construção civil, essa sim uma atividade útil e importante.

Sebastião se encarregou do treinamento de Marcílio e logo se espantou com a habilidade do rapaz. Marcílio era um excelente desenhista e um cortador meticuloso, cuidadoso e concentrado. Marcílio nunca desperdiçava material além de fazer um trabalho extremamente limpo na montagem, com poucas sobras e sem sujeira. Em pouco tempo, o menino superou o mestre e aos 16 anos já era conhecido como melhor azulejista da região.

Conforme aperfeiçoava-se em seu ofício, Marcílio desenvolvia uma obsessão. Ao contrário dos azulejistas comuns que ladrilhavam uma parede com as peças que seu cliente comprava, Marcílio acreditava que os azulejos deveriam ser especialmente projetados para determinada parede. Assim, ele primeiro visitava seu cliente, media a parede, planejava o trabalho, emitia um orçamento e, quando aprovado, produzia os azulejos.

O grande momento para Marcílio era a montagem final, onde ele ia pessoalmente encaixar todos os azulejos recentemente produzidos. Era neste momento que ele via o resultado de todos os seus esforços. Nunca era necessário quebrar uma peça. Marcílio calculava a dimensão de seus azulejos de maneira a nunca precisar recortar ou incluir qualquer azulejo cortado na parede.

Essa era a sua obsessão, sua motivação e seu motivo de orgulho. Apesar da pouca instrução, ele era capaz de calcular a dimensão exata que as peças precisavam ter para encaixar corretamente na superfície disponível. Numa parede de 8,346 m X 3,852 m, por exemplo, era necessário utilizar azulejos de lado igual a 10,7 cm para possibilitar um perfeito encaixe sem que nenhuma peça precisasse ser cortada.

Às vezes o resultado dos cálculo apontavam para medidas extremas para os azulejos, ou muito pequenas ou muito grandes. Quando as peças necessárias eram pequenas demais Marcílio insistia na mudança da dimensão da própria parede, o que normalmente não era possível. Porém, mesmo quando era obrigado a abrir uma concessão, o fato de que havia sim uma medida ideal o confortava, mesmo quando inaplicável na prática.

Um dia o mundo de Marcílio desmoronou. Enquanto gabava-se para um cliente de que sempre poderia calcular a dimensão ideal de um azulejo, independente do tamanho da parede, de forma a evitar qualquer tipo de corte nas peças e um encaixe final perfeito, ouviu a frase que mudaria seu humor daí para diante: "Não é verdade! dependendo da dimensão da parede pode ser impossível calcular um azulejo ideal!". De início, Marcílio adorou o comentário, pois deu a ele a oportunidade de explicar seu método.

O cliente não cedeu, insistindo de que isso havia sido provado a mais de 4000 anos atrás e de que não valia a pena discutirem a questão. Segundo o cliente, estava relacionado com a prova da existência dos números irracionais, precisamente com a demonstração de que o lado do quadrado não é comensurável com sua diagonal.

O cliente, tentou traduzir para Marcílio da seguinte forma. Escolha uma medida qualquer e chame de medida 1, agora forme um quadrado com o lado igual a medida 1, pegue a diagonal deste quadrado e chame de medida 2. Finalmente, considere uma parede retangular com as dimensões iguais a media 1 x medida 2. Pronto, não é possível fabricar qualquer azulejo capaz de ladrilhar perfeitamente a parede.

De fato, um discípulo de Pitágoras fez esta demonstração, provando que a diagonal de um quadrado não é comensurável com seu lado, isto é, não há medida comum entre estas duas grandezas de forma que ambas sejam múltiplas desta medida. A partir daí foi provado a existência de números que não podem ser representados por frações, que modernamente chamamos de irracionais. Conta-se que este discípulo foi morto pela irmandade pitagórica, afinal ele quebrou a ilusão da escola de que todas as grandezas da natureza podiam ser representada por números inteiros ou frações.

Marcílio não entendeu o argumento, porém perdeu a alegria que seu ofício lhe dava, desconfiando sempre que alguém poderia solicitar um serviço impossível. De qualquer maneira, isso também era impossível, afinal Marcílio recebia ou media previamente as dimensões das paredes nas quais ia trabalhar. Porém, as medidas obtidas pelos instrumentos humanos sempre permitiam que o procedimento de Marcílio funcionasse. Para que houvesse uma falha a trena do Marcílio deveria ser capaz de medir números irracionais, com infinitas casas decimais não periódicas.

A história de Marcílio ilustra uma das principais passagens na história da matemática, a descoberta da incomensurabilidade e dos números irracionais. Se dispuséssemos de ferramentas de medidas infinitas, de fato haveria dimensões impossíveis de ladrilhar utilizando azulejos quadrados. É o caso por exemplo de uma parede de 1 metro por raiz de 2 metros. Em todo caso, Marcílio poderia ficar descansado, nenhum instrumento do mundo pode medir de fato um parede com comprimento de raiz de 2 metros, pelo menos, não com esta precisão absoluta.


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