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quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O Lamento de um Matemático



Navegando a esmo pela internet tropeçei em um brilhante ensaio sobre o estado da educação matemática nos Estados Unidos. Escrito pelo professor de matemática Paul Lockhart, o Lamento de um Matemático (A Mathematician's Lament) é um texto poético, inspirador, mordaz e iconoclasta. O autor posiciona a matemática como arte ao lado da música e da pintura e descreve como o sistema educacional americano contribui para a total esterilização desta arte ancestral na educação. Lockhart cita o matemático inglês G H Hardy para ilustrar sua posição neste belíssimo trecho:
Um matemático, como um pintor ou poeta, é um criador de padrões. Se seus padrões são mais permanentes, é porque são feitos com idéias. (A mathematician, like a painter or poet, is a maker of patterns. If his patterns are more permanent than theirs, it is because they are made with ideas.)
O autor recorre ao dialogo à moda de Galileu Galilei para enriquecer seu lamento, Simplicio e Salviati voltam a debater sobre a maneira como a matemática deve ser ensinada dando cor ao argumento central de que o sistema educacional transforma esta arte numa enfadonha e asséptica disciplina onde o aluno é treinado (em oposto a ensinado) a memorizar fórmulas e outros procedimentos.

Vibrei quando o autor tocou no assunto do que chamei “A ditatura da utilidade” neste post aqui. As motivações que levaram as criações matemáticas são raramente de fundo prático mas sim de caráter estético. Em busca da beleza, harmonia, simetria e principalmente simplicidade os matemáticos e matemáticas do passado e de hoje compõem suas idéias e teoremas. Eventualmente algumas verdades encontram utilidade no cotidiano, mas isso é apenas um efeito colateral que pouco contribuiu ou contribui para a criação desta ciência.

As idéias que afloraram deste processo criativo são muito mais importantes do que o resultado em si. Fazer matemática é mais importante do que saber matemática. No processo de construção há espaço para criatividade, erros e acerto, arte e engenharia, preconceito, inveja, traição, altruísmo, louvor, soberba, alegria, ganância, vaidade, etc, enfim todas as facetas da experiência humana. O resultado pronto, quando devidamente limpo e esterilizado corre o risco de apresentar só um dos aspectos desta palheta, o pedantismo, que amedronta e afugenta os alunos.

Como o professor poderá guiar o aluno em criar matemática se o mesmo nunca criou, nunca desenvolveu intuição suficiente que só vêm da prática? Muitos irão argumentar que os alunos precisam usar matemática e não criar. Eu discordo, quantos de nós hoje usamos matemática? Virtualmente ninguém, ou seja, não aprendemos nada do que fomos ensinado. O argumento que usamos matemática quando fazemos contas é vazio, afinal como Lockhart sugere, fazer contas com as quatro operações está tão longe da arte matemática quanto pintar por números (Paint-by-numbers) está longe da arte da pintura.

Acredito que o entusiasmo transmitido pelo professor é poderosíssimo no processo de aprendizagem. Um professor entusiasmado provoca na cabeça do aluno algumas dúvidas de estupendo efeito pedagógico: "Porque esse cara está tão entusiasmado com isso?", "O que ele vê que eu não vejo?". Como um professor pode se entusiasmar com algo que ele nunca viveu, que ele nunca participou.

A crítica de Lockhart é para o sistema americano, mas o mesmo é válido para o sistema brasileiro, variando em nuances. Em especial acho o problema do pedantismo no Brasil é mais grave do que nos EUA. A elite brasileira ainda acha bonito ser pedante. Concluo isso baseado em livros didáticos de matemática para o curso superior. Os livros escritos por americanos são fáceis de ler, notação simples, econômicos em definições e partes enfadonhas. Os livros escritos por brasileiros são em geral herméticos, chatos e de difícil entendimento.

Outro problema da educação matemática brasileira é a moda da contextualização. Muitos professores em nome da modernização procuram encontrar alguma aplicação prática para o assunto abordado, mesmo quando o mesmo não possui aplicação prática real. Esse esforço acaba poluindo a literatura matemática com exemplos artificiais que só geram desconfiança por parte do aluno. Muitos professores esquecem que o contexto no qual o tal conteúdo foi criado foi muitas vezes à busca por beleza, elegância, critérios que são automaticamente desqualificados como motivador interessante.

Enfim, lendo o texto de Lockhart encontrei eco para muitos de meus pensamentos sobre a educação matemática. Estou curioso em saber o que outros pensam sobre o assunto e gostaria que o leitor compartilhasse sua opinião sobre a situação da educação matemática no Brasil.

3 comentários:

cwoelz disse...

Nem na faculdade de Matemática se aprende matematica de maneira "não prática". Por outro lado, no IMPA, se pratica a criatividade, mas claramente não é para todos.

Não sei como resolver. Nem todos tem capacidade analítica e criativa para a matemática.

Anônimo disse...

Parabéns, professor Kundrat pelo excelente e muito bem escrito texto. Acho que a sua visão sobre os problemas inerentes ao ensino da matemática estão muito acertadas.

De fato, a matemática ainda é vista e apresentada como um instrumento, empacotado por sábios de inteligência inalcançável, para resolver tarefas do cotidiano. Também concordo que dificulta-se o aprendizado real da matemática ao máximo, de modo a tornar iluminados todos os que, por ventura, resolvam entendê-la ao invés de memorizar alguns de seus resultados mais antigos.

Entretanto tenho duas divergências com relação a sua visão filosófica da Matemática. A primeira é que, de maneira tão amplamente definida, qualquer atividade humana poderia ser considerada arte. Aspectos pelo senhor ressaltados como: erros e acertos, preconceito, inveja, traição, altruísmo, louvor, soberba, alegria, ganância, vaidade, etc, são caracteristicos do humano e por conseguinte de tudo a ele relacionado. Não necessariamente definem arte. Por definição tão frouxa, até a contabilidade ou a programação poderia ser vista como artística.

Faço esse ponto, pois me preocupa um corolário natural da visão esteta de matemática: o matemático puro e desinteressado tem mais valor do que o matemático aplicado. Creio que a história da matemática demonstra que seus avanços também devem ser creditados à mais humana das motivações: a resolução de problemas. A capacidade intelectual para formalizar e resolver problemas práticos nos distingue enquanto espécie tanto quanto a nossa capacidade de nos emocionarmos e, por conseguinte, exercermos a sensibilidade artística.

Encerro dizendo que a sua visão de matemática como arte enseja algo mais profundo, descrito pelo próprio professor no texto. O entusiasmo e amor genuíno pelo objeto de ensino. Felizes são os seus alunos.

Alex Eisenmann disse...

Olá, obrigado pelo comentário.

Sua posição quanto a semântica é bastante pertinente, porém dá margem a uma leitura diametralmente oposta a mensagem que eu queria dar. "Se a matemática é arte, o que não é arte então?" Essa frase (que você não disse) coloca a matemática novamente como embaixadora da atividade não artística.

Trabalho com programação e posso afirmar que o aspecto estético é onipresente na atividade. É comum definirmos um programa com adjetivos como elegante, bonito, feio (sim, há muito espaço para o feio),sujo, limpo, etc... Sinto que as linguagens de programação nos ajudam a representar as abstrações matemáticas e suas relações. A ciência da computação trata essencialmente de problemas matemáticos em e um dos 10 grandes problemas matemáticos por resolver está um dito de computação (P=NP?).

Não estou sozinho nesta opinião. Donald Knuth começou The Art of Computer Programming (http://en.wikipedia.org/wiki/The_Art_of_Computer_Programming, http://www.amazon.com/Computer-Programming-Volumes-1-4A-Boxed/dp/0321751043/ref=sr_1_2?ie=UTF8&qid=1315785522&sr=8-2) nos anos 70. O toro número 4 foi publicado no ano passado depois de um espaço de 20 anos. O livro não é acessível aqueles não treinados na sua notação, assim como a música. O autor criou a linguagem TEX para poder expressar a notação matemática do texto em seu livro, ou seja, a preocupação estética existe até na forma que o livro foi publicado. Li vários trechos do livro e a arte matemática está lá, de forma óbvia e clara.

A percepção da programação como arte vai muito além de Knuth e para ilustrar vou citar um exemplo atual que tirei do estadão de hoje (http://blogs.estadao.com.br/link/arte-do-software/). Enfim, na minha opinião, se a progamação não é arte, então a matemática também não é.

Não tenho informação suficiente sobre a Contabilidade para classificá-la como arte, não sei quais foram as motivações de Luca Paccioli (matemático que a concebeu as partidas dobradas e professor de Da Vinci) para criar a Contabilidade mas acredito que tenha sido de ordem prática. No íntimo gostaria que pensar que ela não é arte assim poderia responder sua pergunta implícita "O que não é arte então?" e sair desta embaraçosa armadilha.

Um abraço.

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